domingo, 4 de maio de 2014

De um autor que nunca chega

"48 | O que me acontece

Eu, que havia decidido ser, uma vez, o homem da completa ventura, que abrindo caminho a cotoveladas entre a multidão gritasse: Por favor, deixem passar um homem feliz!, tenho, ao contrário, que sair para que me favoreçam com uma coleta de compaixão por tudo o que acontece comigo, porque tudo me acontece. Veja se não:
Anseio a destruição das cidades e me sai um primo que com extraordinário talento e veemente empenho batalha pelas cidades, por sua prosperidade e aumento, resolvendo para o urbanismo todos os problemas do trânsito.
Descubro os melhores títulos de romances e ensaios, e pouco depois minha meditação me demonstra que o mais ridículo e injustificado de uma obra de arte é pôr-lhe um título.
Descubro o mais doloroso e intenso dos assuntos de romance, poema ou teatro, e tempos depois minhas meditações sobre estética me impõem a verdade de que o assunto em arte carece de valor artístico, é estra-artístico, e, além disso, a invenção de assuntos de arte é uma das máximas ociosidades, pois a vida transborda de assuntos.
Concebo e realizo alguns poemas arrebatados, eloquentes, e mais tarde, sempre querendo saber a verdade, descubro a da nulidade artística dos poemas, em prosa e mais ainda em verso, enquanto relatos e personificações.
Nego a morte e fico estudando o modo de prolongar a vida para o qual somente encontrei até agora o não usar terapêutica.
Esmero-me na elegância e talentos da redação literária, e me sai um personagem, o Presidente, que me eclipsa com a grandiloquência e lacrimosas desesperações de suas cartas, e outro, Quiçagênio, que tenta cortejar-me uma protagonista pelo sistema mais contraproducente e tedioso: a literatura de contista.
Espero a volta de um conto na esquina de voltarem somente os chistes.
Fico amigo do Leitor, que faz escrever melhor e me confessa que encontrou o autor que dá mais reputação aos seus leitores.
Enfim, quando tinha preparado o elenco completo dos assessores estéticos, científicos e filosóficos deste romance (três gramáticos, um químico, um historiador, dois descobridores, dois biólogos, um homem de gênio, um pintor de talento, três poetas, um astrônomo, dois músicos, um matemático, um psiquiatra), quando já amadurecia o plano de invenções, teorias embriológicas, palimpsestos decifrados e diálogos espirituosos de arte e filosofia a cargo dos personagens, eis que me cativa a simples conversa amável e generosa da amizade, e todo o meu descobrimento de apresentar um romance com laboratório e técnicos adscritos desmorona tristemente.
Não me resta mais do que proverbializar minha desventura, dizendo:

O mau é ter pensado
Depois de ter feito o mal."

Macedonio Fernández, Museu do romance da Eterna. Tradução de Gênese Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2010, prólogo 48.

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