quarta-feira, 28 de março de 2007

RATO

Às vezes, gostaria de deixar um canto
Me observando.

O silêncio costurado num pano
Amordaçando, invisível

O ruído certeiro do tiro
(esburacando meu queijo suíço)

Fogo amigo.

sábado, 24 de março de 2007

SHEHERAZADE

Meus ouvidos roucos
De tanta escuta; de tanta
Palavra que desacostuma
O que de mim procura

A lua, pela rua larga
Da tua madrugada escura

Devoram, aos poucos

- Do cesto bem-disposto
que tua ousadia, contida
revira, conosco

As laranjas perfumadas
Que caem, silábicas
Dádivas, uma a uma
(úmida, pétala, regada)

Da tua boca
Abençoada...

sexta-feira, 23 de março de 2007

Novas tecnologias e possibilidades expressivas

artigo para o Esquina, jornal-laboratório

Somente há dois anos, na última edição do Fórum Social Mundial realizada em Porto Alegre, pude finalmente começar a perceber o alcance e profundidade dos múltiplos usos humanos das novas tecnologias. Após quase duas décadas envolvido com estudos sobre legislação e políticas de comunicação - regulamentação de mídias tradicionais e novas -, até então eu subestimava as perspectivas potencialmente revolucionárias da transição em curso: embora já reconhecesse o caráter estrutural de tais mudanças, em épocas de alegada desmobilização política a economia política por mim advogada tendia a absolutizar o que, das históricas desigualdades características de nossa sociedade, subsistiria na nova sociedade da informação. Não que a abordagem dos mecanismos de reprodução do poder dominante em novas condições não seja de importância fundamental; afinal, é da competência histórica do poder sua capacidade de bem reproduzir-se. Mas tal abordagem, se de fato histórica, tem de dar conta também dos aspectos insubordináveis das transformações sociais - aqueles elementos a princípio intratáveis que, uma vez fatores atuantes nas fissuras do real, abrem caminho para o (im)possível. Enfim, como indagou certo filósofo barbudo no século XIX, de que valeria compreender o mundo senão para transformá-lo?...

Assim, no turbilhão caleidoscópico de um evento extraordinário como aquele em Porto Alegre - o qual, diga-se de passagem, só se tornou possível com a mobilização dos novos movimentos sociais operando em rede -, meus olhos sofreram sua transição correspondente: ao invés de apenas procurarem o velho no novo, passaram a atentar cada vez mais para as particularidades do presente em rápida transformação.

Dali para cá, tenho procurado identificar nas novas tecnologias de comunicação - especialmente na Internet de incalculáveis implicações, conseqüências e possibilidades - as condições ditas materiais, objetivas, que permitiriam a um número crescente de seres humanos (segundo informações recentes, hoje ultrapassando um bilhão de indivíduos) reorganizarem, em graus variados e de diferentes maneiras, parte significativa de suas relações com o mundo; e ao longo desse processo, reciprocamente alterarem tais condições no sentido de uma superação acelerada, quantitativa e qualitativa, da velha ordem. Para além das discussões tornadas corriqueiras sobre a crise do jornalismo e seu impacto na formação dos novos profissionais - eixo temático do meu trabalho docente no UniCEUB -, gostaria de chamar atenção para um aspecto da transição menos discutido nas disciplinas que ministro: as novas tecnologias como veículos de possibilidades expressivas exponencialmente ampliadas, experimentadas integralmente como possibilidades comunicativas.

Aqui, refiro-me especificamente à expressão estética, cônscio de que, pelo menos desde Pierre Lévy, uma vasta literatura acadêmica e não-acadêmica tem se constituído sob a rubrica-tema da "cibercultura". À parte questões relacionadas à produção coletiva, arquitetura aberta, fim da autoria etc., neste rápido artigo desejo mencionar um tópico algo prosaico, que creio comum à maioria das pessoas, embora pouquíssimo valorizado: o novo alcance da dimensão íntima, afetiva, daquela expressão.

Por exemplo, no que respeita à expressão escrita, muitos de nós tentaram, em algum momento da vida, registrar impressões acerca tanto do que nos cerca quanto do que nos vai por dentro. Diários, poemas, comentários avulsos, diálogos íntimos freqüentemente tomados como infantis, pueris, costumavam ter antes o mesmo destino: o fundo da gaveta. Se dotados de qualidade literária - isto é, capazes de mobilizar afetivamente um número indeterminado de pessoas, entre outras implicações -, deles pouco se poderia saber, vez que, numa cultura onde o senso comum entendia o talento artístico como sobrenatural, os constrangimentos à divulgação eram consideráveis. Dessa forma, as aspirações de muitos a uma vida plenamente criativa encerravam-se prematuramente, assim como a perspectiva de interlocução em círculos afins e mais amplos.

E agora? Weblogs, sites, páginas pessoais decretam, segundo apocalípticos e integrados respectivamente, do fim da distinção entre o público e o privado ao florescimento de um cultivo ampliado da sensibilidade. O que antes não circulava encontra a oportunidade de se fazer conhecer muito além da experiência sensível, independentemente de instâncias (críticos, editoras etc.) sobre as quais a imensa maioria não tem controle. Se uma vez Jürgen Habermas definiu o século XVIII como "o século das cartas" - quando a explosão das correspondências pessoais deu partida à formação da esfera pública burguesa que posteriormente revolucionou o planeta -, o que amanhã dirão do século XXI, que se inicia com a promessa da expressão pessoal que enfim comunica - estética e afetivamente - de maneira irrestrita?

domingo, 18 de março de 2007

DOMINGUEIRA MENTAL

Um passeio ao passado acidentado dos temores
Adequado ao ocaso dos atores, de amores
Estirados de cansados desencontros
De sonhos oleosos de refregas

Dá-se por atalho forrado de cores
Que etéreas mitigaram dores
Colhidas flores - embora sabidas podres
Frutas fora de estação.

Um senão. Que nem corte tão íngreme
Nem por demais pedregoso
Comprometa um juízo
Este obtido penoso:

- Porque o bom retorno do retorno
faz-se adocicado dum acordo
estivado pelo tempo

(se da paixão, mau senhor
de mim não, por favor!...).

sexta-feira, 9 de março de 2007

Estranha forma

Estranha essa minha forma de viver, que me faz pensar que estou condensando o tempo para resolver tudo depois. Na verdade, apenas deixo que ele passe matreiro e arraste consigo todas as chances, todas as oportunidades, todas as coerências e, quem sabe, para sempre.

Mais estranha é minha desambição de galgar caminhos que me não apontem apenas limites. Desejo estradas sortidas, condutoras, sedutoras. À frente, quero enxergar saídas e não bloqueios, flores e não apenas perfumes, sentir e não somente querer sentir.

Distante, vivo o inverso de tudo. Preparo-me para receber da vida o que ainda não lhe pedi. Espero o amanhã diferente, mesmo sabendo que nada virá. Sofro, antecipadamente, pela falta de tudo o que quero fazer porque sei que não o farei. E tenho saudade do tempo em que eu não era nada disso.

Ju

quarta-feira, 7 de março de 2007

TROIANA

Azuis e quentes
São os dias sem poentes
Que, pessoalmente
Assim, interiormente

Escondo em mim;
Contemporâneos doutras vezes
Alargados de repente
Tais buracos ascendentes

Consistem, gêiseres
Num presente à minha mente:

- Sem a noite que alterna
a caverna necessária
à malária descoberta
enfim; ainda que vera, ao fim

para além da vaporosa hera
desta bela, cálida quimera

a queda do trampolim...

domingo, 4 de março de 2007

CORPORAL

Freqüente, penso
Tomar-se todo movimento
A esmo no presente

(independente, mesmo
de intenção que o movimente)

Por outro, alheio
Ao que se passa no momento;

Desloca-se, penso
Continuamente entendimento

(no vácuo entre o rabo fugidio
e a certeza do cabelo em desalinho)

Pelo tempo dividido de maneira
A esquecer de si o ocorrido;

Daí, o que em mim contraditório
Divórcio num hiato remanesce

(o fracasso permanente, a ser
um transitório sempre dever
que se esquece)

Incendeia, geleira carcomida
(do calo ralado à cabeceira)

A mente cuspida inteira
(desmedida dos pés à cabeça)...

sábado, 3 de março de 2007