sexta-feira, 29 de setembro de 2006

DO INESGOTÁVEL PODER DE ILUDIR-SE

Sempre houve um calmo dia
Macio que sonhei claro, de brisa
Morna, quase líquida carícia
Soprando aquém da via vivida

E nesse falso dia de eterna calmaria
(de superlativa falta de expectativa)
Noite a anoitecer havia, e não ver
Arrefecendo o que em seguida vinha

Despertava, da surpresa ira
(matéria escura que tortura a vista)
Esmagada certeza científica:

- Aquela ternura, infinita e obtusa
escorrendo onírica de tal pintura
evoca, no seu ocaso alaranjado
maior ternura ainda, inda obtusa...

BIOQUÍMICA DO EU

a Paulo Paniago

Não há quem viva bem
Se além do que limita
À razão cognitiva
Seu buraco condensado:

- O mínimo adocicado
de ração imperativa
para ação integrativa
ao nível molecular.

(significando que)

Sou carbono e hidrogênio
Num invólucro augusto
Cujo óxido contexto

Oxida por inteiro:
- Precipito-me egoísta
centrípeto a contento!...

terça-feira, 26 de setembro de 2006

Miopia

Ainda bem que a sua guerra é santa. Eu não suportaria vê-lo distante de mim porque sou míope, não enxergo de muito longe. Para vê-lo com mais clareza, preciso que esteja ao alcance das minhas mãos. Para sentir-lhe o calor, é necessário tocá-lo. E para descobrir o quanto o quero, não posso esperar que eu o perca.

Seria doloroso demais ter as mãos vazias: eu não saberia o que fazer delas. Um tormento sentir a realidade pungente da sua ausência: já me acostumei com seus afagos e preciso deles agora mais do que nunca. Fique um pouco mais, e um pouco menos distante: os sonhos ainda perduram e meus óculos se quebraram.

Ju

domingo, 24 de setembro de 2006

NA TURBA

A consciência espessa do ar
Aspira gradativa meu pensar
O momento; o vácuo denso
Que pressinto adentro

Preexiste inexato o espaço
E qualquer movimento; em silêncio
Pulsa paradoxo o composto
Precário de carne e osso

Que sobro - elo derradeiro
Da cadeia vária de passados
Que nada desencadearam

De peso - só esta aspirante
Aspereza de tal espessura
(do gás paralisante na rua).

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

NÃO SEI LATIM

Não sei de onde, se ontem
A idéia tão cara da vida edificada
Numa dura jornada, tão magra
De vitórias e justificada de revezes

Veio em sono numa noite limpa
De angústia; nem sei se minha
A impressão de algo ex abrupto
Varrendo a hora, e clarificativo

Virou-me dormindo, de forma
Que sinto agora, dormente
Um passo de jornada, cativo

Do desejo de algo ex nihilo
Varrendo para fora do meu dia
Esta idéia tão cara de vida...

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Vigília

Prestes a assistir de muito perto o avesso preponderar, o gosto amargo na minha boca dita o sabor da saliva e do que mais eu venha a engolir. A dura sensação de estouro sobrepuja e faz com que eu não me preocupe com mais nada fora dos recentes acontecimentos. Sob meus pés, aos poucos, o chão vem-se rompendo, abrindo crateras que parecem ter vida e me querer lá dentro.

De longe, você acompanha o decorrer da história. Mas escolta, avalia, pondera e me dá a mão. E faz promessas de eterno e incondicional amparo. Essa vigília me conforta e faz de mim alguém quase capaz de impedir a ruína. Sim, apenas “quase”, porque me sinto sem forças para competir com a sorte.

Na esperança de que meu destino dê alguma trégua para que eu mesma o reescreva, corro ao seu encontro. Se eu não puder vencer, quero ao menos estar nos seus braços, no seu colo, quando meu solo se quebrar de vez. Permita que eu fique ali, quieta e distante de tudo, como mera testemunha do meu próprio desmoronamento.

Ju

A LÓGICA DA COVARDIA

Do meio da rua viva
Uma atenção empurra
O medo de atropelar-se
(à vista do longínquo)
Para a calçada segura

Porque, a bem ver
A ida, cabe, arisca
Uma tensão arriscada (e rica!)
Que só o meio da via
Ao olhar possibilita

Mas se tão curta vida
(atribulada em demasia)
Caminhar esta vista
(ao longo do fluxo de chumbo
que o risco caracteriza)

Não restará paisagem
Mal-retida em retina
(se verdade ou mentira
miragem longínqua)
De tal tentativa...

terça-feira, 19 de setembro de 2006

DE OUTRO SERTÃO

Quase fui como vários outros
Daqui - zeloso de órgãos
Dos gostos de manada; cedo
Quis esticar-me corda, afiar-me

Seta de qualquer inábil arco
Alheio de todo alvo, giratório
Tal que primeiro esquecesse
Qual animal e prisca flecha era

Contemporânea da pedra:
- O mediterrâneo ressecado
conterrâneo do vasto espaço

vago que, entre chapadas
cerrado ficara - eu, soldado
apetrecho imaginado, à pedra...

sábado, 16 de setembro de 2006

FENDA

Justo agora, há instantes
(neste gole, pouco antes)
Abriram-se vastas portas
Aos dias, meses e horas

Da memória; um silêncio voraz
Quanto aos anos a fio, estações
Nas quais peculiarmente ativo
(acredito) estive vivo, tal porteiro

Que desdevora o resolvido; insepulta
Passagens de granito neolítico, num ofício
Para crânios bem polidos, de propósito

Vazio; justo agora, floridos os sentidos
(entre damas da noite toda sorriso)
Perfuma, vívido - esse flash idiota!...

quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Bom dia

Um passarinho me visitou hoje bem cedo, pela manhã, e contou que viu você olhando uma foto minha. Descreveu você deitado, com a cabeça sustentada por uma das mãos. Nos lábios repousava um breve sorriso e os olhos, marotos, sorriam também.

Enquanto eu lia, quieta, no quarto, ele entrou pela janela com uma rosa vermelha no bico. Um presente seu para mim. Deixou-a sobre a cama, contou o segredo, sem embaraços, e voou para fora, na mesma urgência com que entrou. Pela janela aberta vi-o pousado no fio por algum tempo, como quem espiasse meus atos para lhe enredar depois.

No quarto ficou o perfume da rosa. Nos meus lábios, seu sorriso. Na minha cabeça, sua imagem, tal qual ele descreveu. E no coração, o veemente desejo de que tudo não fosse apenas um sonho perfeito. Para mim, não há melhor forma de se começar um novo dia...

Ju

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Ontem

É num dia como este que quero me despedir - um dia de brilho, o tempo limpo, passarinhos, vozes calorosas de amigos. Do álcool afagando doce e lentamente os sentidos, de refeições parcimoniosas e música dançando por mim. É assim que quero um dia morrer - do tanto viver na indolência tranqüila, desculpada, de uma vida enfim apaziguada.

domingo, 10 de setembro de 2006

Castelos

A saudade hoje chegou bem cedo, antes mesmo do café e do jornal. Pensei em você e senti nosso cheiro no ar. Sua voz, quase real, me chamou e repetiu, baixinho, palavras que me fizeram estremecer. O vazio gelado me trouxe, então, a vontade louca de correr para você.

Incitando minha agonia, as horas quase correram para trás. Dei mais corda no velho relógio da sala, na tentativa frustrada de fazer acelerar o dia. Por fim, venci o tempo, os contratempos, desintegrei minha decência, abri portas que não devia e destruí paredes para estar ao seu lado.

A intenção era surpreender e bati de frente com a realidade: você não me esperava. Então me dei conta de que sua vida segue sem mim. Voltei os quilômetros percorridos com um bolinho nas amídalas e a certeza de que os castelos imaginados são bem mais coloridos que os de verdade.

É! Talvez não deva mais construir castelos. Mas se um dia voltar a fazê-lo, cuidarei para usar menos lápis de cor.

Ju

PESCARIA

Você vai
Sempre que a hora vem.

Nuvem escurecida de minúcias
Acerca do insuperável modo de ter de obedecer
À própria argúcia
Informada por esta decência
(sem sombra de dúvida)
Integralmente tua.

Você vai
Sempre que a hora ronda
Aquela porta desguarnecida; aquela
Ambígua, travestida
Parede:

- Inadvertida rede.

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

LEI DA ATRAÇÃO

Ei ei ei
Presta atenção
Quando por um fio
Mal falo
O que digo:

- O que reviro
na contramão disto
(convertido granito)

digere o preciso
daquilo que nada chulo, todo chucro
um telefonema ambíguo

(costurado de sentido)
úmido escamoteia
do teu registro.