terça-feira, 30 de setembro de 2014

REVISITA 19: BELÉM, PRIMEIRAS IMPRESSÕES

três fragmentos

O calor já não é tanto; a umidade absorve gradativamente minha indisposição. Estou me adaptando.

***

Belém é melancólica. Parece mulher triste e maltratada. Ouço que desleixada e suja por disputa de filhos ilustres - mulher de malandros coronéis, caprichosos e abusivos. Porém, a cidade mantém certa beleza - a beleza do casario antigo, da copa unificada das mangueiras solidárias... Belém é ultimamente bela - embora comprometida pela velhacaria autoritária, que promove a novidade malfeita e com esta bem coexiste.

***

A tarde é chuvosa sempre. Nuvens negras cobrem o céu e o chão; a vida cobre-se de cinza diariamente. Belém escura é lúgubre, um filme antigo; os antigos casarões de sombras úmidas reavivam seu encanto de passado glorioso. Retomadas, as ruas ainda pertencem mais à chuva do que aos homens. Mais parece uma maneira de se lavar a alma...

03/05/1982

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

AO SENHOR DO TEMPO II

Desertei.

Deserdaste.

Desertificou.

(nos certificamos
assim do que amais:

- dos banhos os sais
que umidificais)

[...]

{se assim por enquanto

rechoverão quando?}

domingo, 28 de setembro de 2014

AO SENHOR DO TEMPO

do clima que endura

... e nada de chuva:

- como passa de uva
ao invés da fruta;

- ou bafo perdura
revés da frescura;

- calmaria escura
em convés de escuna...

Cadê o manda-chuva
o dono da estufa

(do sopro que enfuna
na seca a úmida
presença que a cura)

- mercê nos ajuda
você que é da luta?...

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

DA ESPÉCIE

Cansamos, cansamos, cansamos...

Comemos (se o temos), comemos...

Dormimos, dormimos, dormimos...

Sonhamos, morremos - e infindos

mais fertilizam-nos jacintos...

DA FICÇÃO II

revisitando as revisitas

Por que remexê-lo
- o enorme novelo

de vida enlevada?

Da lida passada
por que me interesso

apenas se impressa?

Por que remexê-la
agora enredado

que desinteressa?

A enorme novela
(seleto o passado)

diversa do impresso

arrisca sintética
o verso pretérito?...

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

REVISITA 18: AREAL

versões

Caminho hesitante nestas ruas de espinhos
Com os olhos vidrados de ver o mundo opaco
Quase cessa a procura, tamanho o cansaço
De divisar o horizonte sempre árido e deserto.

***

De tanto caminhar por estas ruas de espinhos
Tenho os olhos vidrados de ver o mundo opaco
Quase cesso a procura, tamanho o cansaço
De divisar o horizonte sempre árido e deserto.

***

De tanto caminhar pela vida a descoberto
tenho os olhos vidrados de haver o mundo baço;
quase cessa o que procuro, tamanho o cansaço
de empurrar o horizonte a mais árido e deserto...

Belém, 1982; Brasília, 2014.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

REVISITA 17: MASSA FALIDA

... quanto ao que esvazio-me, alego sua ausência de paixões.

Como frutos se amadurecidos
não colhidos
feridos por passarinhos.

(se no chão terão destino
verei)

23/09/1981

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

QUADRA PRÓXIMA DA CHUVA

Do combinado do calor
com a secura derredor
derreter resulta à flor

o aguardo do amor do aguador...

terça-feira, 16 de setembro de 2014

DIDÁTICA PEDAGOGIA

Aula fugidia do dia
aula que se arrasta sofrida

(aquela arrestada perdida
creio, por particularista)

uma sala de aula esvazia:

- onde quarenta e nove havia
sete vezes sete seria
(o que multiplicar-se-ia)

a aula do dia traíra...

domingo, 14 de setembro de 2014

REVISITA 16: DESTINO

Destina-se uma faca
à carne preparada:

- a dividir as águas
das almas inundadas.

Destina-se à criança
brincar com sua balança:

- a burlar vigilâncias
de pesos e distâncias.

Destina-se uma faca
destina-se à criança:

- a ser predestinada
(reconhecida fada)

destina-se defronte
do que certo horizonte

(decerto que horizonte).

16/09/1981

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

DE UMA ILUSÃO ELUSIVA

A sala de aula vazia
depois das aulas do dia

(após toda a algaravia
babélica que a visita)

ecoa sabedoria?

[tal qualidade elusiva
como ilusão distintiva

(porque elusão desmedida
à parte mais discursiva)

ignoro-a ilusiva?]

Ou da porta, todavia
pelas carteiras, solita

deste orfanato, conviva
vento encanado seria?...

REVISITA 15: SETEMBRO

O ciclo fecha-se
incompleto?
Minha satisfação muda
não encontra paralelo
conosco.

Teu humor agitado
força sua razão ao vislumbrar-me.
Mas não há cordas ou grilhões
(mesmo seda branca)
para rompermos...

04/09/1981

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

DA FICÇÃO

O passado
impõe-se 'ado':

- põe-se dado
pois de fato.

Que pesado!...

(o trabalho
de inventá-lo)

REVISITA 14: UMA CARTA

curta, acerca de anos universitários

Nada posso dizer do sentimento hibernante sem hesitar frações de tempo presente. O tempo. Elástico ressecado, amnesia seletivo o pensamento (e seus rompimentos).

Dos anos que passam, apenas resquícios de momentos cruciais especificam. A alegria incontida; a decepção maldisfarçada. A memória detalha - mas o tempo que escorrerá das lembranças inexiste. Pura ilusão.

Assim é que condensaremos três anos de nossas vidas no espaço de um dedal. Esse dedo - de galinha ou de elefante - deslizará sobre as marcas dos semblantes, pelo que mudamos e no que aprendemos. A partir daí, entretanto - quanto às estórias da história -, outras poderemos: à medida que formos novos em nossos momentos, mais longe e difuso e enganoso será o passado, mesmo marcante.

Creio melhor assim. Justificará as demais tentativas.

29/08/1981

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

REVISITA 13: AGOSTO

A luz tênue iluminando o teu rosto
contrasta a sombra com o claro exposto

pelas esquadrias de vidro
que amoroso enfeito a teu gosto.

Teus pensamentos oculto
dos basculantes que adorno

colorido.

(eu vigilante de um mundo
desenterrando em agosto)

20/08/1981

terça-feira, 9 de setembro de 2014

REVISITA 12: LEMBRANÇA

de um recado

Se soubesses do brilho
com que penso os teus olhos

a noção de distância

desapareceria

como ave agonizante
do mar da superfície.

Eu não lamentaria tanto
contratempos, ventos contrários

aos quais fomos insubmissos;

tampouco envergaria a lança
(hipotética embora)
amiga das nossas feridas

- pois tanto és mais querida
na proximidade física

de eu mais sentir teus pensamentos.

[não estão tão mortas
as raízes entrelaçadas

por si em mim de ti]

15/08/1981

sábado, 6 de setembro de 2014

REVISITA 11: ESPERA E MUDANÇA

três fragmentos

Deusa do mar
transpiro o teu respirar

mesmo a milhas de distância da costa.

Faz minha boca voar
de mim salgar.

***

Ah, meus olhos, teus olhos
de um brilho a outro, ah, brilho

transfigure nossas vidas opacas!...

***

Saudade dá e passa
e vem e vai a vaga

não estique a prosa meu bem, rebentá-la

ressacada! A palavra
dá vontade e passa.

13/08/1981

SUPÉRFLUA

Um sol oblíquo
e um ar melífluo

(ambos contínuos)

algo acordaram
cedo um silêncio
mutualíssimo.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

BINÁRIA

Um lombo
de pombo

(calombo
do tombo)

brotará

1. manacás
    (oxalá!)

ou trará

2. carcarás.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

LIVRO DE HISTÓRIA

presa à retina

Duas meninas
raparigotas

par de garotas
das pequeninas

que a vida rota
disfarçaria

de olhos bolotas
negras retintas

porque tão lindas;

uma Carlota
outra Joaquina

(Debret lorota
Rugendas via)

posaram horas
livres de estórias
(serões patriotas)

pra uma visita
da minha vista

litografias.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

TERRITORIAL II

Sou uma criatura da Asa Norte.
O resto da cidade - é a morte!

Sou caso de prospectiva
vida de eremita com sorte
em Brasília - senso teria?

(ilha nesta casa revista)

Ter de deixá-la, minha Asa
abandoná-la, minha taba

é como obrigar-me da Ceasa:

- hortifrutigranjeira, castra
das carnes paixões madrugadas!...

(baratos se houvessem, tão caras)

Se sou criatura da Asa Norte
(o avesso da outra asa, forte)

de móveis que removo imóveis
de carros que apodreço raros
de sonhos que aposento sonhos

por que perguntas - Sul, Sudoeste

Lagos Sul, Norte, satélites
aquela expansão a noroeste?

Nada contra as efemérides
dos lugares em que estiveste

- mas sou cacto da Asa Norte

(animal sem rodas, radical
de esporas, esporo do local)

talvez único dessa espécie.

...

[Brasília, da perspectiva
acima - sentido faria?]

QUANDO ESQUEÇO

de bebê-lo

Café à tarde
esfria cedo

- esfria à parte
da arte que intento

(e descontento)

até que o tento
tarde destarte

[parte que acedo
descarte à arte]