sexta-feira, 23 de março de 2007

Novas tecnologias e possibilidades expressivas

artigo para o Esquina, jornal-laboratório

Somente há dois anos, na última edição do Fórum Social Mundial realizada em Porto Alegre, pude finalmente começar a perceber o alcance e profundidade dos múltiplos usos humanos das novas tecnologias. Após quase duas décadas envolvido com estudos sobre legislação e políticas de comunicação - regulamentação de mídias tradicionais e novas -, até então eu subestimava as perspectivas potencialmente revolucionárias da transição em curso: embora já reconhecesse o caráter estrutural de tais mudanças, em épocas de alegada desmobilização política a economia política por mim advogada tendia a absolutizar o que, das históricas desigualdades características de nossa sociedade, subsistiria na nova sociedade da informação. Não que a abordagem dos mecanismos de reprodução do poder dominante em novas condições não seja de importância fundamental; afinal, é da competência histórica do poder sua capacidade de bem reproduzir-se. Mas tal abordagem, se de fato histórica, tem de dar conta também dos aspectos insubordináveis das transformações sociais - aqueles elementos a princípio intratáveis que, uma vez fatores atuantes nas fissuras do real, abrem caminho para o (im)possível. Enfim, como indagou certo filósofo barbudo no século XIX, de que valeria compreender o mundo senão para transformá-lo?...

Assim, no turbilhão caleidoscópico de um evento extraordinário como aquele em Porto Alegre - o qual, diga-se de passagem, só se tornou possível com a mobilização dos novos movimentos sociais operando em rede -, meus olhos sofreram sua transição correspondente: ao invés de apenas procurarem o velho no novo, passaram a atentar cada vez mais para as particularidades do presente em rápida transformação.

Dali para cá, tenho procurado identificar nas novas tecnologias de comunicação - especialmente na Internet de incalculáveis implicações, conseqüências e possibilidades - as condições ditas materiais, objetivas, que permitiriam a um número crescente de seres humanos (segundo informações recentes, hoje ultrapassando um bilhão de indivíduos) reorganizarem, em graus variados e de diferentes maneiras, parte significativa de suas relações com o mundo; e ao longo desse processo, reciprocamente alterarem tais condições no sentido de uma superação acelerada, quantitativa e qualitativa, da velha ordem. Para além das discussões tornadas corriqueiras sobre a crise do jornalismo e seu impacto na formação dos novos profissionais - eixo temático do meu trabalho docente no UniCEUB -, gostaria de chamar atenção para um aspecto da transição menos discutido nas disciplinas que ministro: as novas tecnologias como veículos de possibilidades expressivas exponencialmente ampliadas, experimentadas integralmente como possibilidades comunicativas.

Aqui, refiro-me especificamente à expressão estética, cônscio de que, pelo menos desde Pierre Lévy, uma vasta literatura acadêmica e não-acadêmica tem se constituído sob a rubrica-tema da "cibercultura". À parte questões relacionadas à produção coletiva, arquitetura aberta, fim da autoria etc., neste rápido artigo desejo mencionar um tópico algo prosaico, que creio comum à maioria das pessoas, embora pouquíssimo valorizado: o novo alcance da dimensão íntima, afetiva, daquela expressão.

Por exemplo, no que respeita à expressão escrita, muitos de nós tentaram, em algum momento da vida, registrar impressões acerca tanto do que nos cerca quanto do que nos vai por dentro. Diários, poemas, comentários avulsos, diálogos íntimos freqüentemente tomados como infantis, pueris, costumavam ter antes o mesmo destino: o fundo da gaveta. Se dotados de qualidade literária - isto é, capazes de mobilizar afetivamente um número indeterminado de pessoas, entre outras implicações -, deles pouco se poderia saber, vez que, numa cultura onde o senso comum entendia o talento artístico como sobrenatural, os constrangimentos à divulgação eram consideráveis. Dessa forma, as aspirações de muitos a uma vida plenamente criativa encerravam-se prematuramente, assim como a perspectiva de interlocução em círculos afins e mais amplos.

E agora? Weblogs, sites, páginas pessoais decretam, segundo apocalípticos e integrados respectivamente, do fim da distinção entre o público e o privado ao florescimento de um cultivo ampliado da sensibilidade. O que antes não circulava encontra a oportunidade de se fazer conhecer muito além da experiência sensível, independentemente de instâncias (críticos, editoras etc.) sobre as quais a imensa maioria não tem controle. Se uma vez Jürgen Habermas definiu o século XVIII como "o século das cartas" - quando a explosão das correspondências pessoais deu partida à formação da esfera pública burguesa que posteriormente revolucionou o planeta -, o que amanhã dirão do século XXI, que se inicia com a promessa da expressão pessoal que enfim comunica - estética e afetivamente - de maneira irrestrita?

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