quinta-feira, 26 de julho de 2007

"E a noite iluminava a noite"

o sol reflexo em Roland Barthes

"NOITE. Todo estado que suscita no sujeito a metáfora da obscuridade (afetiva, intelectiva, existencial) na qual ele se debate ou se apazigua.

1. Vivencio sucessivamente duas noites, uma boa, outra ruim. Sirvo-me, para dizê-lo, de uma distinção mística: estar a oscuras (estar às escuras) pode acontecer, sem que haja carência, porque estou privado da luz das causas e dos fins; estar en tinieblas (estar nas trevas) acontece-me quando sou cegado pelo apego às coisas e pela desordem que daí provém.

Na maior parte das vezes, estou na obscuridade mesma do meu desejo; não sei o que ele quer, o próprio bem é para mim um mal, tudo ecoa, vivo numa roda-viva: estoy en tinieblas. Mas, às vezes, também, é uma outra Noite: sozinho, em posição de meditação (é talvez um papel que me atribuo?), penso no outro calmamente, tal como é; suspendo toda interpretação; entro na noite do sem sentido; o desejo continua a vibrar (a obscuridade é transluminosa), mas não quero apoderar-me de nada; é a Noite do não-lucro, do dispêndio sutil, invisível: estoy a oscuras: estou ali, sentado simplesmente e pacificamente no interior negro do amor.

2. A segunda noite envolve a primeira, o Obscuro ilumina a Treva: 'E a noite estava obscura e iluminava a noite.' [S. João da Cruz] Não procuro sair do impasse amoroso pela Decisão, pelo Domínio, pela Separação, pela Oblação, etc., em suma, pelo gesto. Apenas substituo uma noite pela outra. 'Obscurecer esta obscuridade, eis a porta de toda maravilha.' [Tao Te King]"

Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 259-260.

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