sábado, 4 de abril de 2015

Soa, precisamente, a minha pessoa

por Pessoa

"Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vel-o a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tel-a sahindo de Lisboa até Bemfica, e tel-a mais intensamente do que, quem vá de Lisboa á China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. 'Qualquer estrada' disse Carlyle, 'até esta estrada de Entepfuhl, te leva até ao fim do mundo'. Mas a estrada de Entepfuhl, se fôr seguida toda, e até ao fim, volta a Entepfuhl; de modo que o Entepfuhl, onde já estavamos, é aquelle mesmo fim do mundo que iamos a buscar.
Condillac começa o seu livro celebre, 'Por mais alto que subamos e mais baixo de desçamos, nunca sahimos das nossas sensações'. Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos creamos, porque assim, sendo deuses d'ellas, as vemos como ellas verdadeiramente são, que é como foram creadas. Não é nenhuma das septe partidas do mundo aquella que me interessa e posso verdadeiramente vêr; a oitava partida é que percorro e é minha.
Quem cruzou todos os mares cruzou sómente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que ha na terra. Passei já por cidades mais que existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluiram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a copia debil do que já vira sem viajar."

Fernando Pessoa, "O livro do desassossego". In Obras de Fernando Pessoa, vol. X (prosa). Lisboa: Promoclube, pp. 217-218.

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