sexta-feira, 15 de junho de 2007

Inexprimível amor

sobre outra impossibilidade, novamente Roland Barthes

"ESCREVER. Engodos, debates e impasses provocados pelo desejo de 'exprimir' o sentimento amoroso numa 'criação' (particularmente de escrita).

1. Dois mitos poderosos nos fizeram acreditar que o amor podia, devia se sublimar em criação estética: o mito socrático (amar serve para 'engendrar uma multiplicidade de belos e magníficos discursos') e o mito romântico (produzirei uma obra imortal escrevendo minha paixão).
Entretanto, Werther, que antes desenhava abundantemente e bem, não pode fazer o retrato de Carlota (mal pode esboçar-lhe a silhueta que é precisamente o que, dela, o capturou). 'Perdi... a força sagrada, vivificante, com a qual criava mundos ao meu redor.'

2. 'La pleine lune d'automne,
Tout le long de la nuit
J'ai fait les cent pas autour de l'étang.'

[À lua cheia de outono, / Ao longo de toda a noite / Perambulei ao redor da represa.]

Nenhuma indireta mais eficaz, para dizer a tristeza, do que este 'ao longo de toda a noite'. E se eu, também, tentasse?

'Ce matin d'été, beau temps sur le golfe,
Je suis sorti
Cueillir une glycine.'

[Nesta manhã de verão, bom tempo no golfo, / Saí / Para colher uma glicínia.]

ou:

'Ce matin d'été, beau temps sur le golfe,
Je suis resté longtemps à ma table,
Sans rien faire.'

[Nesta manhã de verão, bom tempo no golfo, / Fiquei durante muito tempo à mesa, / Sem fazer nada.]

ou ainda:

'Ce matin, beau temps sur le golfe,
Je suis resté immobile
A penser à l'absent.'

[Nesta manhã, bom tempo no golfo, / Fiquei imóvel / Pensando no ausente.]

De um lado, é não dizer nada, de outro, é dizer demais: impossível ajustar. Minhas ânsias de expressão oscilam entre o denso haikai, resumindo uma enorme situação, e um grande carregamento de banalidades. Sou ao mesmo tempo grande demais e fraco demais para a escrita: estou ao lado dela, que é sempre rigorosa, violenta, indiferente ao eu infantil que a solicita. O amor tem decerto um pacto com minha linguagem (que o mantém), mas não pode alojar-se em minha escrita.

3. Não posso me escrever. Quem seria este eu que se escreveria? À medida que entrasse na escrita, a escrita o esvaziaria, o tornaria vão; produzir-se-ia uma degradação progressiva, na qual a imagem do outro seria, também ela, pouco a pouco envolvida (escrever sobre alguma coisa é corromper esta coisa), abominação cuja conclusão não poderia deixar de ser: para quê? O que bloqueia a escrita amorosa, é a ilusão de expressividade: escritor, ou considerando-me tal, continuo a me enganar sobre os efeitos da linguagem: ignoro que a palavra 'sofrimento' não exprime nenhum sofrimento e que, por conseguinte, empregá-la, não apenas significa nada comunicar, mas ainda, e bem depressa, irritar (sem falar no ridículo). Alguém deveria me ensinar que não se pode escrever sem fazer o luto da própria 'sinceridade' (sempre o mito de Orfeu: não se virar). O que a escrita exige, e que nenhum amante lhe pode conceder sem dilaceramento, é que ele sacrifique um pouco de seu Imaginário, e que assegure assim, através de sua língua, a assunção de um pouco de real. Tudo o que eu poderia produzir, no melhor dos casos, seria uma escrita do Imaginário; e, para isso, eu teria que renunciar ao Imaginário da escrita - me deixar laborar por minha língua, sofrer as injustiças (as injúrias) que ela não deixará de infligir à dupla Imagem do amante e de seu outro.

A linguagem do Imaginário não seria nada mais do que a utopia da linguagem; linguagem perfeitamente original, paradisíaca, linguagem de Adão, linguagem 'natural, isenta de deformação ou de ilusão, espelho tímido de nossos sentidos, linguagem sensual (die sensualische Sprache)': 'Na linguagem sensual, todos os espíritos conversam entre si, não têm necessidade de nenhuma outra linguagem, pois é a linguagem da natureza.'

4. Querer escrever o amor é afrontar o atoleiro da linguagem: esta região desesperada em que a linguagem é ao mesmo tempo muito e muito pouco, excessiva (pela expansão ilimitada do eu, pela submersão emotiva) e pobre (pelos códigos mediante os quais o amor a rebaixa e reduz). Diante da morte de seu filho-criança, para escrever (nem que fossem farrapos de escrita), Mallarmé se submete à divisão parental:

Mère, pleure
Moi, je pense

[Mãe, chora / Eu, eu penso]

Mas a relação amorosa fez de mim um sujeito atópico, indiviso: sou meu próprio filho: sou ao mesmo tempo pai e mãe (de mim mesmo, do outro): como poderia dividir o trabalho?

5. Saber que não escrevemos para o outro, saber que essas coisas que vou escrever jamais me farão amado de quem amo, saber que a escrita não compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente ali onde você não está - é o começo da escrita."

Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 157-161.

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